João

O protagonista da minha história de hoje poderia ser um jovem normal, conhecido de todos, popular, o famoso da cidade. Ele poderia ser tudo isso se não fosse o fato de usar roupa suja e morar na frente do hospital da cidade, em cima de um papelão, que por sinal será vendido amanhã no ferro velho. (Chocou um pouco não é?) Melhora um pouco seu sentimento de culpa se eu falar que ele consegue alguns trocadinhos com a reciclagem e gasta em drogas? (Imagino que isso te alivie um pouco).

João (nome fictício) deve ter sonhos, quem não tem, não é mesmo? Ele deve ter, mas não se lembra de nenhum. Para falar a verdade eu acredito que nunca tenha perguntado assim descaradamente se ele tinha algum sonho. Prefiro me ater às ordens mais práticas. “João tá com fome?” “Tô” “Então beleza, vem aqui”.

Na rua a gente pergunta coisas mais diretas porque o máximo que podemos fazer é aliviar aquele momento. Mas ao longo desses três anos de projeto eu percebo que um momento é melhor do que nenhum.

Na rua a gente pergunta se eles estão com fome e eles nos dizem que a fome é grande, mas o frio é maior. Aí a gente pergunta “cadê aquele cobertor que demos mês passado?” (dá até vergonha escrever isso aqui e espero que vocês estejam entendendo o porquê) e eles respondem: “mês passado tia? Já foi…”

A rua é aquele local onde tudo tem prazo de validade diário e quando, com muita sorte, semanal. Nada dura e é até fácil entender o porquê, não é? Na rua a gente pergunta se quer roupa, que podemos dar até mais de uma, mas não tem onde guardar porque o carrinho é pra reciclagem e as coisas de reciclagem não são limpas. E claro que não são: a gente é incapaz até de separar plástico da comida, como pretendemos que a reciclagem deles seja no mínimo limpa e higiênica para poderem guardar outras coisas junto?

Na rua eles também dizem pra gente que a vontade de ficar sóbrio é grande, mas a cabeça lembra todo o dia que a cama que eles vão dormir é de papelão.

O João fala isso com muita leveza e eu ouço como quem ouve um segredo e reflete sobre tudo e nada ao mesmo tempo. Ele, inteligentíssimo. E eu não digo isso porque ache que o João merece mais do que tem. Eu vi e sei que ele é. Mas João reprovou por falta. Não dava para ir para a escola todos os dias. Era longe e violento. Na esquina dele tinha outra vida sendo proposta e o resto a gente já sabe como termina.

Ele poderia ser aquele seu amigo de laboratório que faz o experimento de física enquanto você mexe no celular ou o bonzão em matemática que passa resposta pros amigos não reprovarem Cálculo novamente. Mas os problemas encontraram o João antes que alguém o encontrasse ou até mesmo ele se encontrasse.

Eu sempre acreditei que para tudo em nossa vida existem dois caminhos, o fácil e o difícil. Se você quiser pensar em mais de dois fique a vontade, me limito a esses. Talvez João tenha optado pelo caminho mais fácil ou não tenha havido ninguém no caminho difícil para estender a ele a mão e o colar num abraço. Aí quando a gente não está, com certeza, o grande percursor do caminha fácil, no caso do João as drogas, vai estar lá.

Até para nós ela está também…
A diferença é quem está no outro caminho…
E se há alguém lá.
No caso do João… Não tinha ninguém.

Mas eu quero falar das coisas boas do João. Ele tem um brilho nos olhos que vou falar pra vocês, vale a pena conhecer. E quando a gente vê esse brilho nos olhos não dá mais pra correr, já nos deixamos cativar. Daí a gente entra no caminho dele, sem se importar com os espinhos, as pedras e a terra cheia de buracos. A gente entra no caminho dele e o cola num abraço. A gente corre pelo João e depois pede para ele correr conosco.

E talvez vocês possam perguntar o porquê.

Corremos por que o João merece e por que acreditamos que nossos corpos não são sadios atoa. Há um propósito para tudo nessa vida e na maioria das vezes é “ser corpo” por/para/de alguém.

É muita das vezes correr com os pés calçados e velozes para mostrar um mundo em um caminho que talvez ele de pés descalços nunca tenha visto. É correr constante para levar a um lugar melhor. Essa é a nossa missão.

Hoje a noite, João foi convidado a terminar os estudos. A SME abriu um concurso de Nível Médio e João irá fazer. Os documentos dele serão refeitos e o Histórico Escolar já está sendo providenciado.

E tudo isso aconteceu porque houve um olhar. Um pequeno minuto em que o tempo parou. Uma atenção. Um sorriso. Para João mostrar seu brilho. Um brilho que veste roupa suja e dorme em um papelão. E que sonha. Sonha em poder ser o João.

E ele será, pois está colado em um abraço.

Se essa história te fez pensar um pouquinho, me resta pedir que ache o seu João e faça por ele o que ninguém tem tempo de fazer:

Cole ele em um abraço. No seu.

Mariana Cassiano

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